Cais do Porto de Jaguarão

Sara Teixeira Munaretto
É impossível falar da formação de Jaguarão descolada de sua relação com as águas e a orla do rio Jaguarão/Yaguarón. Esta que foi a principal via de acesso à cidade até meados do século XIX, conectando a região às redes de trabalho e ao Atlântico Negro. Contavam os guaranis, antigos moradores destes pagos, que havia no rio a presença de um terrível animal. Um medonho híbrido, meio jaguar, meio peixe, do tamanho de um cavalo pequeno, olhos flamejantes e uma boca repleta de dentes pontudos. Diz a lenda que o Jagua-Ru (ou Yaguaru) atocaiava suas presas na beira do rio, fazendo desmoronar as barrancas e devorando as pobres vítimas que caiam no rio. Apesar das inúmeras tentativas para capturá-lo, o Jagua-Ru nunca foi encontrado...
O rio está na gênese da fronteira, marco físico e central entre conflitos militares, ocupação do território e escravização. Também marco de travessias, comunidades solidárias, vivências, trocas e experiências de liberdade. É na beira do rio que forma-se o povoado que dará origem à cidade, a partir de um acampamento militar português instalado nas proximidades da antiga Guarda espanhola do Cerrito, no ano de 1802. Região de intensidade na passagem da população que realizava comércio, contrabando e também acessava o Uruguai. Não por acaso nossa atividade da Oficina dos “Territórios Negros” inicia-se aqui, tomando em consideração o papel central do rio como uma veia que transporta e conecta produtos e gentes, na região platina, no Brasil e no mundo atlântico.
Por essas águas na antiga área portuária ingressaram grandes contingentes de africanos/as e afrodescendentes no porto de Jaguarão, provenientes de diferentes regiões da África. Este território dá sentido à abordagem da formação social de Jaguarão construída com base no trabalho da mão de obra africana escravizada, onde inúmeras pesquisas apontam um expressivo índice populacional de escravizados e a composição predominantemente negra do município durante todo século XIX. O protagonismo negro no trabalho que forja a cidade está em evidência nos dados disponíveis sobre os índices populacionais de Jaguarão que aponta que até o final da década de 1860, havia no município, resguardada a proporcionalidade, a maior população escravizada na Província. Por suas características, Jaguarão pode ser compreendida e comparada como uma cidade negra com atributos muito semelhantes a outras cidades litorâneas tais como Pelotas, Rio Grande e até Rio de Janeiro e Salvador.
A orla do rio está conectada ao processo de tráfico transatlântico interno do Rio Grande do Sul (a chamada “tercei-ra perna”), onde africanos/as eram reconduzidos para diversas regiões do país pelos portos do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Diversas pesquisas e fontes históricas demonstram que a região participava do mercado de redistribuição da população escravizada, caracterizado por ter uma dimensão menor, porém bastante intenso.
Era na região da orla onde acontecia o desembarque e onde realizava-se o comércio de compra e venda de escravizados. Africanos e afrodescendentes desembarcados na cidade eram destinados principalmente às principais atividades econômicas da região que tinham predomínio do trabalho rural de fronteira nas fazendas, pecuária e do setor saladeiril, fundamental na região com suas charqueadas instaladas nas margens do rio e seus afluentes, onde o trabalho escravizado foi usado em larga escala.
Por fim, destacamos a importância crucial da orla e das águas na perspectiva da construção das experiências de liberdade, pois foi território de rotas de fugas para o Uruguai, que aboliu oficialmente a escravidão em 1842. Nos jornais da província, inúmeros anúncios de fuga indicavam como possível paradeiro as Bandas Orientais.
Um conhecido Itan¹ Yorubano, fala sobre como dos seios e ventre de Yemanjá brotam os rios onde vão reinar as demais Yabás, como Osun, Oyá e Obá, que juntamente com Yemanjá e Nanã, as orixás femininas orientam os caminhos e fluxos, os ciclos das águas trazendo força vital.
¹ Itans: mitos e canções com ensinamentos da ancestralidade africana, legados que chegam pelas águas.
Referências
CARATTI, Jônatas Marques. O solo da liberdade: as trajetórias da preta Faustina e do pardo Anacleto pela fronteira rio-grandense em tempos de processo abolicionista uruguaio (1842-1862). São Leopoldo: Oikos; Editora UNISINOS; 2013.
BERUTE, Gabriel Santos. Dos escravos que partem para o porto do sul: características do tráfico negreiro de São Pedro do Rio Grande do Sul, c. 1790- c. 1825. Porto Alegre: PPGH/UFRGS, 2006. (Dissertação de Mestrado)
SILVA, Tiago Rosa. Uma fronteira negra: resistência escrava através das fugas anunciadas nos jornais jaguarenses (1855-1873). Jaguarão: UNIPAMPA, 2015. (Trabalho de Conclusão de Curso).