Casarão Barão Tavares Leite

Sara Teixeira Munaretto
A perspectiva patrimonial de Jaguarão, exemplificada em seu conjunto histórico e paisagístico tombado pelo IPHAN, privilegiou um enfoque nos patrimônios dos grupos dominantes, as elites. O sobrado do Barão Tavares Leite, ainda que um dos últimos exemplares de opulência da arquitetura colonial portuguesa, foi incluído aqui com o objetivo de afirmar que as casas, casarões, obras públicas, a cidade como um todo, foi erguida por meio de muito trabalho de africanos/as e afrodescendentes. Este palacete do charqueador português estabelecido na região localiza-se na cidade baixa, próximo da orla e do Mercado Central, na antiga Rua do Comércio e atual XV de Novembro. Um destaque nesta construção é que a memória da comunidade negra da cidade relativa ao casarão referência a presença de um elevador de madeira em duas dependências, que funcionava a partir da força braçal dos trabalhadores, mostrando a barbárie do trabalho escravizado.
É um sítio importante para refletirmos sobre o trabalho dos/as escravizados/as em ambiente urbano e doméstico. Por sua atividade econômica, as fontes disponíveis nos mostram uma grande importância do trabalho escravizado na área rural, nas fazendas, pecuária e setor saladeiril. Mas também tinha uma importância na zona urbana, onde essas pessoas tinham conhecimentos em diversos ofícios como trabalhos domésticos, ferreiros, carpinteiros, comércio de rua, etc. É importante destacar o quanto os saberes relativos aos métodos construtivos, também foram formulados e exercidos por africanos e seus descendentes. Ou seja, para além da mão-de-obra braçal, havia um conhecimento articulado desde o continente africano, que favoreceu a construção das edificações e outras obras urbanas.
Pesquisas nos mostram que os cativos que circulavam pela área urbana possuíam uma relativa autonomia e mobilidade, talvez em decorrência da característica da posse de escravizados, onde uma grande quantidade de proprietários detinha a posse de em média de 1 a 9 cativos, o que resultaria em uma mobilidade e o desempenho de diferentes trabalhos. Ressalta-se que o contexto do trabalho urbano favorecia a execução de diferentes serviços remunerados que ao fim do dia rendiam uma cota aos seus senhores e cujo excedente ficava com esses/as trabalhadores/as. Era relativamente comum nesse tipo de trabalho que os chamados escravizados/as de ganho acabassem acumulando pecúlio com diferentes serviços, ocasionando inclusive recursos para alforria. Em Jaguarão houve alto índice de acumulação de pecúlio por parte dos/as escravizados/as, mesmo antes da Lei do Ventre Livre. Entre 1830 e 1860, 39% das cartas de alforrias foram compradas pelos/as próprias escravizados/as e entre 1870-1887 o índice baixa um pouco para 27,6%, mas ainda extremamente representativo. Historiadores/as tem evidenciado em pesquisas sobre a cidade, que o número de alforrias na década de 1880 foi ainda maior, pois muitas cartas se perderam, ou as liberdades foram realizadas por outros tipos de contratos. Chama atenção as cartas de alforrias nestes períodos 21 terem abarcado de forma mais geral as mulheres, e aqueles/as que estavam em idade produtiva, o que evidencia um intenso trabalho de mediação das conquistas de trabalhadores/as escravizados/as para almejarem a sua liberdade jurídica. Fato inclusive perceptível quando observamos entre os mesmo dois períodos citados acima, as alforrias tidas como incondicionais somarem 30% e depois 56%, respectivamente
Essa situação era favorável à circulação de informações e na construção das sociabilidades, onde certamente escravizados construíam relações diárias entre si e com outras camadas populares que incluíam livre pobres e libertos.
Referências
BOM, Matheus Batalha. Porosas fronteiras: experiências de escravidão e liberdade nos limites do Império (Jaguarão – segunda metade do século XIX). Dissertação (mestrado) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em História, São Leopoldo, 2017.
FERRER, Francisca Carla Santos. Entre a liberdade e a escravidão na fronteira meridional do Brasil: estratégias e resistências dos escravos na cidade de Jaguarão entre 1865 a 1888. São Paulo: USP, 2011. (Tese de Doutorado).
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1888). São Paulo: HUCITEC, 1998.