Charqueadas

Isadora Teixeira da Cunha
Em meados do século XIX Jaguarão passou a ser um dos polos charqueadores da região sul do estado, tendo características propícias para o estabelecimento de indústria saladeiril, como a proximidade com rotas fluviais utilizáveis para importação e exportação do produto. Passou a atender então a demanda de produção de carne salgada da região, mas também produziu para grandes centros urbanos do país e fora dele, visando suprir a alimentação de população pobre e escravizada.
A mão de obra escravizada configurava grande parte dos trabalhadores envolvidos na produção artesanal do charque na cidade, ainda que existam registros de trabalhadores livres nas estâncias, seu número era reduzido. Os números de escravizados que chegaram até Jaguarão no período são marcadores da presença escravizada na região, a cidade chegou a tornar-se maior importadora de escravizados do que exportadora para áreas cafeeiras. A reivindicação do espaço charqueador como um território negro acontece devido ao fato de que muitos membros da comunidade negra da cidade têm em sua memória familiar fortemente vinculada ao espaço de produção do charque.
Para entender a situação da produção na cidade e a população que tinha vínculos empregatícios com o manejo e feitura do charque, é importante conhecermos as duas charqueadas proeminentes dos séculos passados. Embora com uma produção de charque menor do que a dos polos como Pelotas, por exemplo, as quantidades que eram produzidas em Jaguarão abasteciam bem a região fronteiriça e garantiam a exportação do volume excedente. Dando destaque a dois exemplos da indústria saladeiril da cidade, podemos citar a Charqueada São Pedro, fundada ainda na primeira metade do século XIX; e a Charqueada São Domingos, tendo como data de fundação o ano de 1902.
A fundação da Charqueada São Domingos não significou o fechamento da anterior, e ambas funcionaram paralelamente por alguns anos, até o encerramento da Charqueada São Pedro. A produção do charque na cidade ultrapassa o segundo quartel do século XX e chega a década de 1960/70, quando o avanço nas tecnologias de armazenamento de carnes chega através das câmaras frias. Sabemos que a chegada de novas formas de armazenar e conservar carnes não extingue de imediato a produção do charque e que a produção na cidade também passa por adaptações para essa era de frigoríficos.
Para entender os espaços charqueadores como espaços de sociabilidade é preciso voltar a atenção para os ho-mens que compunham a base da indústria, trabalhadores que lidavam com o abate e o preparo da carne. Para esses trabalhadores, a charqueada também é um espaço para manejar estratégias de sobrevivência e trocas. Em alguns relatos é possível entender como pequenos desvios de mantas de carne precisavam ser pensados por grupos, para que não houvessem prejudicados; como aqueles homens que estavam em posições mais confortáveis para fazer isso eram procurados pelos outros trabalhadores e de que forma essa mesma carne fora da charqueada é utilizada como moeda de troca e de aproximação.
Assim como era comum em outros territórios, a charqueada não é um mundo à parte isolado de outros locais de associatividade e sociabilidade, alguns dos trabalhadores das charqueadas, que trabalharam posteriormente no frigorífico, ocuparam cargos frente ao Clube 24 de Agosto ou eram simplesmente associados ao clube. A exemplo disso, temos a figura de Malaquia de Oliveira, um dos fundadores do Clube 24 de Agosto, e encontramos os relatos do Sr. Natálio Cardoso Chagas, que traz na memória lembranças das formas de "negociação" de peças de carne e de histórias que ouviu a respeito de estratégias de sobrevivência nesses espaços, isso já nos anos de 1950 e 1960 do século passado. Um reflexo da longa duração da cultura da carne na cidade e da representação desses locais como territórios propícios à sociabilidade.
Referências
AL-ALAM, Caiuá Cardoso; OLIVEIRA, Fernanda. A comunidade negra na fronteira entre Brasil e Uruguai: uma análise sobre o Pós-Abolição por meio dos Clubes Negros de Jaguarão e Melo em meados do século XX. História Unisinos, v. 25, n. 3, p. 503-517, 2021.
CEREDA, Allan Mateus. “Não tinha o que comer, botava no bolso”: Situações de classe na charqueada/frigorífico São Domingos (1950-1975). Jaguarão: Universidade Federal do Pampa, 2017. (Trabalho de Conclusão de Curso).
LIMA, Andrea da Gama. Territórios do charque em Jaguarão, RS: patrimônio, memória e diáspora africana na fronteira meridional do Brasil. Pelotas: UFPel, 2020. (Tese de Doutorado).